TEMA 2
PRODUÇÃO SIMBÓLICA E DIVERSIDADE CULTURAL
Foco: O fortalecimento da produção
artística e de bens simbólicos e promoção da diversidade das expressões
culturais, com atenção para a diversidade étnica e racial.
Todos os seres humanos possuem a
capacidade de criar símbolos. Tais símbolos se expressam em práticas culturais
diversas, como nos idiomas, costumes, culinária, modos de vestir, crenças,
criações tecnológicas e arquitetônicas, e também nas linguagens artísticas
(teatro, música, artes visuais, dança, literatura, circo, etc.). Dessa forma,
as políticas culturais guiadas por um conceito amplo de cultura, devem manter
um olhar atento às linguagens artísticas, mas também reconhecer e valorizar
igualmente outras possibilidades de criação simbólica, expressas em novas
artísticas e em modos de vida, saberes e fazeres.
A arte pode ser compreendida como um
dos subsistemas simbólicos da cultura – o sistema estético – onde estão
refletidos os significados subjacentes à vida social, presentes também em
outros campos: na religião, no trabalho, nas relações de parentesco e poder.
Assim entendida, a arte é uma das formas de conhecer e interpretar o mundo. A
ampla gama de expressões artísticas existentes no planeta resulta da
diversidade de concepções que os seres humanos têm sobre como são e funcionam
as coisas.
As instituições culturais, reconhecendo
essa diversidade, lançam um novo olhar sobre o debate referente à valoração
simbólica da produção artística. Tanto as instituições responsáveis pelo
patrimônio cultural, como as que cuidam das artes contemporâneas, começam a
construir um modelo menos rígido para classificar e tratar essa produção. As
fronteiras que pareciam separar o tradicional do contemporâneo se desfazem. O
próprio conceito de contemporaneidade passa a levar em consideração as
manifestações populares. Mesmo porque essas manifestações nunca foram
estáticas, ao contrário, as tradições sempre evoluem e se modificam,
acompanhando o movimento da história. Os bens simbólicos, tomados em conjunto,
agora fazem parte de um projeto de política cultural que considera a
multiplicidade de expressões como a referência institucional.
A pintura corporal dos índios
brasileiros exemplifica essa fusão de arte e patrimônio cultural. Ela é, ao
mesmo tempo, expressão estética, sinalização ritualística, identificação de
grupo étnico, diferenciação sexual, representação de poder, proteção corporal e
mimetismo. É uma manifestação cultural de entendimento simples para os que dela
compartilham, integrada harmoniosamente à comunidade e ao meio-ambiente. No
entanto, é complexa para os estudiosos, pois abrange um universo fabuloso de
variações, conforme a origem do grupo, refletindo um sistema de códigos que
remontam a tempos imemoriais.
Na história do mundo ocidental,
contudo, o campo das artes adquire autonomia e se fragmenta. Na atualidade, a
cada dia que passa as fronteiras que separam as artes se tornam mais flexíveis,
mas ainda cabe às instituições culturais compreender as especificidades de cada
uma e identificar suas carências e potencialidades. E instituir políticas de
fomento, investimento e financiamento que garantam, em parceria com a
iniciativa privada e não-governamental, a sustentação dos processos de criação,
produção, distribuição, difusão, consumo e preservação dos bens simbólicos.
Não cabe aos governos ou às empresas
conduzir a produção da cultura, seja ela erudita ou popular, impondo-lhe
hierarquias e sistemas de valores. Para evitar que isso ocorra, o Estado deve
permanentemente reconhecer e apoiar práticas, conhecimentos e tecnologias
sociais, desenvolvidos em todo o país, promovendo o direito à emancipação, à
autodeterminação e a liberdade de indivíduos e grupos. Cabe ao poder público
estabelecer condições para que as populações que compõem a sociedade brasileira
possam criar e expressar livremente a partir de suas visões de mundo, modos de
vida, suas línguas, expressões simbólicas e manifestações estéticas. O Estado
deve garantir ainda o pleno acesso aos meios, acervos e manifestações
simbólicas de outras populações que formam o repertório da humanidade.
A capacidade de criar é inerente a
todos os seres humanos e se manifesta desde a tenra infância. No entanto, para
que seja desenvolvida e potencializada, a criatividade depende, além do esforço
individual, de um contínuo processo e formação, informação e aperfeiçoamento.
O campo das linguagens desenvolve-se
com base na experiência técnica, pesquisa e acesso aos meios de produção e
difusão. O fato de alguns artistas populares terem conseguido desenvolver suas
habilidades sem qualquer apoio não deve encorajar a crença na espontaneidade ou
elogio à precariedade. O desenvolvimento das artes e da cultura requer apoio e
instituições formadoras e mediadoras. Os artistas e técnicos da produção
cultural necessitam permanentemente de recursos para sua especialização e
atualização. Dessa forma, é preciso avaliar, valorizar e requalificar
assiduamente as instituições de capacitação existentes, bem como construir
articulações eficazes com o sistema educacional.
Em 1985 ocorreu a separação entre os
ministérios da Educação e da Cultura, que até então era tratada como apêndice
da política educacional. Criar um ministério exclusivo, no momento da transição
para a democracia, significou reconhecer a importância da cultura para a
construção da cidadania e para a proteção, promoção e valorização da diversidade
cultural e da criatividade brasileiras. No entanto, esse ganho também trouxe
perdas. Educação e Cultura praticamente deram-se as costas e a separação
administrativa acabou gerando uma separação conceitual. Perdeu a Educação, com
políticas dissociadas da dimensão da arte, da criatividade e da diversidade
cultural; perdeu a Cultura, com políticas baseadas numa visão exclusivamente
comercial, voltadas para o entretenimento e esquecidas de seu papel na promoção
da cidadania.
Cabe, agora, buscar o reencontro da Educação
e da Cultura, sem que para isso seja necessário retornar à situação
administrativa anterior. As políticas culturais e educacionais podem construir
uma agenda comum e colaborativa que qualifique a educação artística, implante a
educação patrimonial, contribua para o incentivo ao livro e à leitura e
recoloque a cultura na vida cotidiana de professores e estudantes, abrindo
espaço para que os mestres da cultura popular possam transmitir a riqueza dos
seus saberes.
2.3- Democratização da comunicação e cultura
digital
As atividades relacionadas à informação
estão adquirindo importância crescente no mundo atual. A produção, difusão e
acesso às informações são requisitos básicos para o exercício das liberdades
civis, políticas, econômicas, sociais e culturais. O monopólio dos meios de
comunicação (mídias) representa uma ameaça à democracia e aos direitos humanos,
principalmente no Brasil, onde a televisão e o rádio são os equipamentos de
produção e distribuição de bens simbólicos mais disseminados, e por isso
cumprem função relevante na vida cultural.
As TVs e rádios comerciais vendem sua
audiência (o público) para os anunciantes. Sua estratégia dirige-se à captação
de público e à manutenção da atenção desse público. Elas vivem disso, que é o
que tem valor em seu modelo de negócio. Para tanto, sua programação visa,
basicamente, o entretenimento. As TVs e rádios públicas devem caminhar em outra
direção. Não podem ser caixas de ressonância das demandas do mercado e tampouco
sujeitar-se a promover os governantes. Precisam ser independentes dos governos
e do mercado. Sua programação deve basear-se na experimentação de linguagens,
na discussão de ideias e na busca da autonomia e da emancipação de ouvintes e
telespectadores. Em suma, o negócio da televisão e das rádios públicas não é o
entretenimento, é cultura, educação, informação e liberdade.
A TVs e rádios públicas são
estratégicas para que a população tenha acesso aos bens culturais e ao
patrimônio simbólico do país em toda sua diversidade. Para tanto elas precisam
aprofundar a relação com a comunidade, que se traduz no maior controle social
sobre sua gestão, no estabelecimento de canais permanentes dedicados à
expressão das demandas dos diversos grupos sociais, na adoção de um modelo
aberto à participação de produtores independentes e na criação de um sistema de
financiamento que articule o compromisso de Municípios, Estados e União.
Organicamente ligadas à sociedade, podem ampliar seu leque de prestação de
serviços, conjugando programações para diferentes meios (como a telefonia
celular e a internet) e espaços educativo-culturais, como escolas,
universidades, centros culturais, sindicatos e associações comunitárias.
A cultura digital, disseminada pela
rede mundial de computadores e tecnologias afins, muda significativamente a
forma como a gestão cultural deve encarar seus instrumentos e finalidades. De
um lado, os novos meios criam a possibilidade de conservar e facilitar o acesso
a amplos e valiosos acervos culturais. De outro, são apropriados por grupos e
indivíduos como seu lugar de criação, de modo que o mundo digital se torna ele
mesmo um novo campo onde formas de expressão e articulação das identidades são
inventadas a todo o momento.
A chamada exclusão digital diminuiu
significativamente nos últimos anos no país, embora permaneça significativa. No
entanto, o principal desafio para a política pública voltada à cultura digital
não se esgota nos programas de inclusão. Diz respeito também à articulação
institucional necessária à promoção do livre uso das ferramentas tecnológicas
na experiência cultural, por meio de programas de capacitação, sem deixar de
lado o apoio ao desenvolvimento das linguagens de expressão e a oferta de
conhecimentos de domínio público por meio das plataformas digitais.
A convergência digital representa o
ambiente contemporâneo de circulação da cultura, que deve ser observado sob uma
perspectiva atenta à distribuição das tecnologias e às suas formas de
utilização, bem como ao desenvolvimento de conteúdos, digitalização de acervos
públicos e incentivos aos projetos experimentais.
2.4- Valorização do patrimônio cultural
e proteção aos conhecimentos dos povos e comunidades tradicionais3
A preservação do patrimônio material e
imaterial representa um dos pontos centrais de atuação das políticas culturais.
Na base dessa atuação está uma noção de patrimônio que busca contemplar,
atualizar e valorizar a percepção histórica e artística da diversidade
cultural, étnica e social do país, bem como seus documentos arqueológicos e
etnológicos. Porém, historicamente, as políticas de patrimônio cultural
vinculam-se às estratégias de legitimação do poder, ou seja, à necessidade que
tem o Estado de se apresentar como o representante do interesse geral da
sociedade, de todos os seus membros, independentemente de classe social,
gênero, etnia, etc. Para cumprir a função legitimadora, as políticas de
patrimônio costumam construir uma identidade coletiva dos habitantes de
determinado território (nacional, subnacional, local) a fim de unir os
indivíduos em torno de valores que, supostamente, são comuns a todos. Para que
essa identidade exerça eficazmente o papel legitimador ela deve ser singular
(referir-se somente a um território), imutável (ou seja, anti-histórica) e
unívoca (portadora de um mesmo significado para todos os membros da sociedade).
A pergunta que se coloca é a seguinte:
como pode o poder público proteger e promover a diversidade cultural existente
no território sob sua jurisdição, se ele necessita, para legitimar-se, de
construir uma identidade única e comum no âmbito desse mesmo território? Uma
alternativa que se apresenta é considerar como coletiva a soma das diversas
identidades grupais, mas, para isso, é preciso abandonar o objetivo de
construir uma identidade oficial e ser capaz de operar em um campo no qual
podem ocorrer tensões e conflitos entre os diversos movimentos de identidade.
Além disso, o poder público tem de estar aparelhado para processar as múltiplas
demandas dos atores sociais que lutam pelo reconhecimento de suas identidades.
Enfim, trata-se de reconhecer que existe unidade na diversidade, e diversidade
na unidade.
Uma outra questão, também complexa,
refere-se à possibilidade de haver distintas interpretações sobre os
significados do patrimônio cultural. A distinção entre patrimônio material e
imaterial ajuda a compreender esse fenômeno. É fato que o patrimônio material –
particularmente o constituído de “cal e pedra” – tende a ser duradouro,
variando pouco através do tempo. O patrimônio imaterial, por sua vez,
constituído pelos saberes, celebrações e formas de expressão, tende a
modificar-se mais rapidamente e a adquirir novos formatos. Contudo, o que
importa mesmo são os valores e significados atribuídos pelas coletividades a
esse patrimônio, seja ele material ou imaterial. Desse ponto de vista é
possível dizer que todo patrimônio cultural é, em última instância, imaterial,
porque afinal significados e valores são coisas imateriais. No entanto, os
significados podem variar quando interpretados por um ou outro grupo humano.
Todos concordam que Jerusalém tem uma grande significação para a história da
humanidade. Mas os valores ali contidos variam conforme o olhar das diferentes
religiões, podendo ser até mesmo antagônicos se interpretados por católicos,
muçulmanos ou judeus.
Todas essas complexas questões levam a
concluir que os espaços de memória, como os museus, arquivos e bibliotecas, têm
uma grande importância social e política. A memória coletiva necessita de
suportes para manter-se disponível e em permanente ressignificação.
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